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Artigo Acadêmico: A Falácia da “Guerra às Drogas”

A Falácia da “Guerra às Drogas” e suas Representações na Mídia

Brenda Evaristo Reis Santos²

Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Bahia.

RESUMO
O trabalho aborda o conceito de "Guerra às Drogas" propagado no Brasil e visa discutir como a mídia hegemônica exerce um papel reforçador do argumento que a ação intervencionista da polícia nas favelas e periferias é em função do combate ao narcotráfico. A partir do entendimento de que esta política faz parte de um sistema estruturalmente racista, a pesquisa baseia-se em estudos de teóricos que abordam a temática e na observação qualitativa de matérias produzidas pela mídia hegemônica e não hegemônica. Como resultados, espera-se compreender a causa da divergência entre discursos dos dois segmentos de mídia, fomentar a reflexão acerca das ações da imprensa e combater a disseminação da falácia da “guerra às drogas”.

Palavras-chave: Guerra às drogas; mídia; racismo.

INTRODUÇÃO

O Brasil traz em seu passado um vergonhoso histórico de exclusão e discriminação contra povos originários e afro-brasileiros. Tendo sido a última nação do Ocidente a abolir a escravidão (CARNEIRO, 2018), o país, de acordo com a historiadora Lilia Moritz Schwarcz³, ainda apresenta fortes indícios desse atraso, já que essa população sofre até os dias de hoje com as consequências dessa virada de página repetina, sem políticas de reparação para incluir os ex-escravos à sociedade.
As consequências desse sistema repercutem na atualidade por todas as esferas, e o racismo segue estando atrelado a todas elas. O fato de o país — enquanto Estado — não ter estabelecido nenhuma política de reintegração a essas pessoas que foram retiradas de seu país para serem escravizadas aqui, fez com que, após a assinatura do documento de “libertação” pela então princesa regente Isabel Leopoldina, essas populações permanecessem excluídas e marginalizadas. Além disso, se viram forçadas a amontoar-se em favelas com a chegada dos imigrantes europeus no início do século XX, vítimas de uma política de embranquecimento da população (NASCIMENTO, 1978). 
Hoje, 135 anos após a assinatura da “Lei Áurea”, a população negra ainda sofre com os resquícios desse passado constrangedor do país. Mesmo com o desenvolvimento de políticas públicas nos últimos anos, dados⁴ do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apontam que negros são os que mais vivem em vulnerabilidade econômica no país, têm os piores índices de educação, 2,6 mais chances de serem mortos que brancos e representam 68,2% do total das pessoas encarceradas no país. Além disso, segundo relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, grupo de estudos sobre violência, negros são 75% dos mortos pela polícia no Brasil. Nesse bojo, faz-se necessário discutir sobre a “Guerra às Drogas”, argumento que fomenta esta política de extermínio. 
A Guerra às Drogas, embora desencadeada na década de 1970 e com acirramento no Brasil nas últimas duas décadas, não é um processo totalmente novo. O uso de substâncias psicoativas está presente ao longo da história da humanidade. Atualmente, essas substâncias são classificadas enquanto lícitas, permitidas por lei – a exemplo o álcool e o tabaco; e ilícitas, substâncias proibidas por lei – dentre elas derivadas de plantas como a maconha, o ópio, a cocaína e sintéticas como as anfetaminas e a dietilamida de ácido lisérgico. No entanto, nem sempre as substâncias capazes de alterar o estado de consciência dos homens foram proibidas, sendo sua proibição um movimento que iniciou no século XX.
Daniela Ferrugem (2019) considera que não há como discutir a guerra às drogas sem considerar os marcadores sociais que forjam os jovens negros como os inimigos de fato dessa guerra. O fenômeno se trata da ação intervencionista da polícia nas favelas e periferias supostamente em função do combate ao narcotráfico, que resulta na dizimação e encarceramento em massa de indivíduos, em sua maioria, negros e jovens (RYBKA et al, 2008)
Diante da percepção desta realidade que tornou o Brasil o terceiro país com a maior população carcerária do mundo, busca-se compreender as reais motivações atreladas à “guerra às drogas”. O trabalho propõe a reflexão do tema por meio de teóricos realizadores do debate. Além disso, vê-se pertinente também a discussão sobre como ele é representado na mídia, formadora de opinião no imaginário social (VESTENA, 2008). Na televisão, nos sites, blogs e redes sociais, a mídia reforça o conceito de “guerra às drogas”, com matérias produzidas sem nenhuma profundidade acerca do tema. Ao mesmo tempo, percebe-se a existência de veículos de mídia alternativa que abordam a questão com maior penetração e criticismo. 
O presente artigo problematiza os aspectos contemporâneos da proibição das drogas apontando a função social da mídia na veiculação de notícias referentes ao comércio das substâncias consideradas ilícitas. Função essa que responde a necessidade do capitalismo contemporâneo de criação de novos inimigos imaginários com a finalidade de exercer controle social sobre a população (FERNANDES; FUZINATTO, 2012). Para tal, serão avaliadas duas matérias jornalísticas produzidas por veículos da mídia hegemônica (Globo e Rede Bandeirantes) e duas matérias realizadas por mídias alternativas (Alma Preta e Mídia Ninja). 

DESENVOLVIMENTO

Historicamente, os Estados Unidos da América foram os principais promulgadores das legislações de cunho proibicionista. Foi no país estadunidense que a proibição de substâncias psicoativas se tornou prioridade política, caracterizada pelo “conservadorismo da moralidade e dos bons costumes” (D’ELIA FILHO, 2007, p. 81). As motivações para esta criminalização são múltiplas e complexas:
[...] não se ‘explica’ o empreendimento proibicionista por uma única motivação histórica. Sua realização se deu numa conjunção de fatores, que incluem a radicalização política do puritanismo norte-americano, o interesse da nascente indústria médico-farmacêutica pela monopolização da produção de drogas, os novos conflitos geopolíticos do século XX e o clamor das elites assustadas com a desordem urbana. (FIORE, 2012, p.9).

O movimento formulado por grupos protestantes foi motivado por um forte discurso moral, tornando-se, assim, uma forma de controle das minorias sociais presentes no país. Imigrantes mexicanos eram pejorativamente vistos como consumidores de maconha e os negros, considerados usuários de cocaína perigosos (RODRIGUES, 2003, p. 2-3). “Sob a justificativa de combate ao tráfico” (D’ELIA FILHO, 2007, p. 83), a possibilidade de controle dessas populações foi se forjando. Influenciados pelos Estados Unidos, outros países na América Latina começaram a seguir esse modelo que se tornou ainda mais pungente no governo de Richard Nixon, a partir de 1971 (RUTHE, 2022). No Brasil, este processo se deu durante o período de formação do Estado Burguês e de transição da formação social brasileira para o modo de produção capitalista (SAES, 2006). Isto se traduziu num acelerado processo de urbanização e industrialização, acompanhado da precarização do trabalho para a maioria da população. Essas questões sociais foram abordadas através de medidas repressivas, higienistas e reguladoras do mercado de trabalho.

Diante da necessidade de conter essa ameaça e de formar uma classe trabalhadora constituída de indivíduos saudáveis e dóceis, o combate ao uso de determinadas substâncias psicoativas (ou a determinadas formas de uso das mesmas, como no caso do álcool) foi uma das estratégias de enfrentamento da luta das classes populares insatisfeitas com suas condições de existência. (RYBKA et al, 2018, p. 6)

Nesse ínterim, se iniciou o combate ao narcotráfico nos moldes atuais, marcado por significativa violência, estigmatização e exclusão social de consumidores e principalmente de dependentes. Com a perpetuação deste cenário, fica em destaque o recorrente discurso de que está em curso no Brasil uma guerra por conta da proibição de drogas. No entanto, segundo Ferrugem (2019), a questão primária deste panorama segue em silenciamento, que é: quem é o inimigo central dessa guerra? 
Toda guerra é uma guerra contra pessoas, um conflito que gera vítimas majoritariamente oriundas das classes sociais mais pobres e estigmatizadas (RYBKA et al, 2018). Tendo somente este entendimento, já é possível questionar o sentido do conceito“guerra às drogas”, em que a preposição “a” une duas palavras: guerra e drogas, e indica que uma coisa é direcionada à  outra – a guerra é “contra” as drogas. Para um olhar mais atento, existem amplas evidências do verdadeiro propósito da campanha moral e militar “contra as drogas”. No Brasil, esta política se insere de forma desigual na população e afeta desproporcionalmente as regiões periféricas dos grandes centros (TELLES et al, 2018). Enquanto as favelas são vistas pela sociedade como espaços precários, caóticos, perigosos e que precisam ser controlados, a figura do “traficante” é amplamente associada às periferias. O discurso difundido é o de que “poderemos diminuir significativamente a violência urbana enterrando todo o mal-estar da nossa liberdade consumista através do encarceramento dos “traficantes”, que outrora fora destinado a hereges, judeus e comunistas” (D’ELIA FILHO, 2007). Desta forma, o tráfico passou a representar o principal inimigo da sociedade no imaginário popular e a figura do traficante, o indivíduo “sem nenhum limite moral, que ganha a vida a partir dos lucros imensuráveis à custa da desgraça alheia, que age de forma violenta e bárbara, ou seja, uma espécie de incivilizado, aos quais a prisão é destinada na metáfora de jaula” (D’ELIA FILHO, 2007). A cultura do medo é propagada na sociedade, acentuando ainda mais o caráter repressivo das políticas públicas que chegam aos territórios favelados. As práticas utilizadas são de conhecimento público: incursões policiais frequentes e uso irrestrito de armamento pesado, sob a justificativa de se derrubar organizações criminosas e apreender substâncias ilícitas. Os moradores das periferias são cotidianamente expostos à violência, postos na linha de frente das operações. Deste modo, Direitos Humanos são seriamente violados – aulas são canceladas, trabalhadores têm que ficar confinados em casa, comércios fecham as portas. Mas os piores e mais dramáticos efeitos da “guerra às drogas”, no Brasil, são o extermínio e o encarceramento em massa da população jovem, pobre e negra, em sua maioria (RYBKA, 2018). 
Conforme exposto anteriormente, a população negra representa 68,2% do total das pessoas encarceradas no país e são 75% dos mortos pela polícia. Além disso, dados alarmantes do “Mapa da Violência 2013: homicídio e juventude no Brasil” (WAISELFISZ, 2013) mostram que entre 1980 e 2011, o homicídio de jovens cresceu 326,1%; dos 467,7 mil homicídios contabilizados entre 2002 e 2010, 307,6 mil (65,8%) foram de negros; nesse mesmo período (2002–2010), houve decréscimo de 26,4% nos casos de homicídios de brancos e acréscimo de 30,6% nos de negros. Os dados sobre sistema prisional do Ministério da Justiça do Brasil e do International Centre for Prison Studies, citados por Karam (2013), também não são animadores: nos últimos vinte anos, o Brasil praticamente quadruplicou sua população carcerária – atualmente a terceira maior no mundo. Em dezembro de 2012, havia 548.003 presidiários no país, o que corresponde a 287,31 presos por cem mil habitantes (a média mundial, segundo dados de maio de 2011, é de 146 por cem mil habitantes). Em dezembro de 2005, os acusados e condenados por tráfico de drogas representavam 9,10% do total dos presos brasileiros; em dezembro de 2012, chegavam a 26,90%; entre as mulheres, o que alcança praticamente metade das presas (47,35%), tendo chegado a quase 60,00% no ano anterior (em dezembro de 2011, eram 57,62%). Ademais, apesar de as drogas circularem por todos os espaços de uma cidade, as favelas e periferias são os únicos locais que sentem o impacto violento do suposto combate ao mercado ilícito dessas substâncias. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro relatou que a maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas acontece nas favelas da região metropolitana do Rio (HABER, 2018). Em 2017, 41 operações policiais foram realizadas no Complexo da Maré, conjunto de favelas localizadas na Zona Norte da cidade – ou seja, em média, uma operação a cada 9 dias (REDES DA MARÉ, 2017). 42 pessoas foram mortas no mesmo ano, na Maré, enquanto 57 ficaram feridas. As atividades nos postos de saúde ficaram paradas por 45 dias e as aulas foram suspensas por 35 dias. Outros dados indicam que o aconteceu no Complexo da Maré em 2017 não se trata de uma exceção, mas sim, a regra: na região do Complexo do Alemão, as estatísticas foram muito similares. O Observatório da Intervenção, projeto criado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), alega que quanto à segurança pública do estado do Rio, o governo federal investe prioritariamente nas operações policiais em favelas e periferias, com recorde no número de mortes. 
Diante dos dados, fica evidente que o impacto desta política recai sobre a sociedade brasileira de forma desigual. Para Rodrigues (2008), a guerra às drogas se configura como uma “potente tática de controle social e perseguição seletiva” (p.102). Embora a venda e o consumo de drogas não seja exclusivo de uma determinada parcela da população, a escolha do Estado é de prender e assasinar jovens negros e moradores das favelas e das periferias. Não se vê, por exemplo, operações policiais em festas raves, movimento majoritariamente dominado pela branquitude, onde o comércio 
e o consumo de substâncias ilícitas é explícito⁴.

Os ‘inimigos’ nessa guerra são os pobres, os marginalizados, os negros, os desprovidos de poder, como os vendedores de drogas do varejo das favelas do Rio de Janeiro, demonizados como ‘traficantes’, ou aqueles que a eles se assemelham, pela cor da pele, pelas mesmas condições de pobreza e marginalização, pelo local de moradia que, conforme o paradigma bélico, não deve ser policiado como os demais locais de moradia, mas sim militarmente ‘conquistado’ e ocupado. (KARAM, 2015, pp.36-37). 

Para Ferrugem (2019), a raiz dessa problemática se encontra na condição estrutural do racismo no Brasil. Em “O que é Racismo Estrutural?”, o advogado e filósofo Silvio Almeida (2018)  explica que o racismo opera no âmbito jurídico-legal e é percebido em mecanismos estatais, práticas cotidianas e vieses ideológicos que naturalizam uma sociedade racializada, em que o preconceito racial é entendido como processo histórico estrutural e estruturante das relações de poder contemporâneas. Desta forma, o racismo se constitui em práticas sociais concretas e que por meio de sua condição institucional necessita do aval dos sistemas jurídicos, políticos e econômicos que perpetuem a condição de práticas discriminatórias objetivas. 
Nesse bojo, compreende-se que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário bem como as instituições policiais (regidas pelo Estado) seguem uma lógica racista internalizada e operacionalizada. Entender, então, a “guerra às drogas” como uma política racista, é imprescindível para se assimilar a estrutura em que estamos inseridos e promover a justiça social. No entanto, Ferrugem (2019) considera que este entendimento ainda é rejeitado pela maioria, que defende o Brasil como um país diverso e acolhedor, que certamente não é racista. Para a autora, ao negar o racismo, impossibilita-se a criação das condições necessárias para superá-lo, e por isso, se manifesta uma necessária e urgente revisão. O presente trabalho trabalha na promoção deste sentido. 
Sob esta ótica, analisemos também a mídia brasileira, que se encarrega de, cotidianamente, relatar as mazelas acarretadas pela ação policial de enfrentamento ao narcotráfico. Não é exagero afirmar-se que todos os dias, ao observarmos as notícias que circulam nos veículos de comunicação, vemos, no mínimo, uma notícia relacionada. Um levantamento das notícias do jornal Metro (que tem distribuição gratuita em 6 capitais brasileiras) referentes às publicações dos dias 22, 23 e 24 de setembro de 2017, mostra como resultado 87 notícias relacionadas ao tráfico de drogas (Ferrugem, 2019). As matérias curtas do jornal, que por ser distribuído gratuitamente é bastante “enxuto”, revela uma falta de aprofundamento da questão. Esta dinâmica é observada como tendência entre a mídia hegemônica, onde o assunto é pauta cotidiana nos meios de comunicação. A organização das temáticas noticiadas leva em consideração os interesses da grande mídia, a proximidade geográfica com a audiência e a profundidade da apresentação do tema. É sobre esse aspecto que se pontua os valores notícias, conjunto de fatores que vão indicar se um evento é passível de ser noticiado ou não (TRAQUINA, 2008), aliado à seleção dos acontecimentos e como a matéria é formada, ou seja, como os valores de seleção irão filtrar os eventos que se tornarão notícias (WOLF, 1999). No contexto do noticiamento de fatos ligados à “guerra às drogas”, a grande mídia, como ferramenta do sistema capitalista, esforça-se por criar inimigos virtuais, que geram um sentimento de insegurança na população e ajudam a perpetuar a criminalização da pobreza resultante da proibição e repressão de drogas consideradas ilegais (FERNANDES et al, 2012). Os meios de comunicação apontam a repressão como único meio de lidar com o comércio dessas substâncias, o que suscita um consentimento às práticas realizadas. A mídia é responsável por ecoar um alarmismo na sociedade, servindo como operadora de uma situação particularmente ideal para criar consenso nos esforços do Estado de expandir a repressão ao tráfico e ao consumo de drogas (RODRIGUES, 2003).
D’Elia Filho (2007) explica que a ligação entre tráfico de drogas e violência é um sentido construído pela mídia, que mostra que a única saída para os envolvidos nessas atividades é a privação de liberdade. Mesmo que “a grande maioria de traficantes desarmados e não violentos são encarcerados, os veículos de comunicação justificam as ações do sistema penal através do “combate a violência”” (D’ELIA FILHO, 2007, p. 119). Considerando o significativo potencial formador de opinião pública dos meios de comunicação (VESTENA, 2008), buscou-se analisar duas matérias jornalísticas divulgadas pela mídia hegemônica. A primeira é uma notícia do G1, portal de notícias do Grupo Globo, publicada em outubro de 2023 com o seguinte título: 
Figura 01: Captura de tela de matéria do G1

Fonte: G1, 2023.

A frase, por si só, implica alguns sentidos. Com “operação contra tráfico de drogas”, a significância explícita no texto é que a operação militar (que resultou em cinco assassinatos) é unicamente em função do combate ao narcotráfico, sendo esta a primeira impressão do leitor ao se deparar com a matéria.  A preposição “contra” cumpre a mesma função de “a” em “guerra às drogas”, justificando erroneamente as práticas intervencionistas. Além disso, ao inserir “nenhum policial foi atingido” no título da matéria, uma das partes de maior relevância do texto jornalístico (PIRES, 2019), o veículo acaba por atribuir um destaque expressivo à figura dos policiais, estes que foram os agentes responsáveis pelas mortes. No corpo do texto, o direcionamento segue raso. Analisemos a frase: “de acordo com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), os suspeitos foram baleados ao resistir à prisão – três eram alvos de mandados e dois, segundo a corporação, eram escoltas”. É importante ressaltar que a Secretaria Nacional de Segurança Pública determina que o uso de força letal pela polícia é o mais extremo uso da força e só deve ser usado em último caso, quando todos os outros recursos já tiverem sido experimentados e em caso de ameaça à vida de terceiros (SENASP, 2006). Não se explica, na matéria, como foi esta “resistência” por parte das vítimas, muito menos se problematiza o uso de armas de fogo pelos policiais. 
A matéria segue relatando o acontecido – onde ocorreu, quem realizou a operação, quantos foram presos e um breve histórico de ações anteriores. O texto encerra com a explicação: “O nome "Pax Vobis" faz referência à saudação litúrgica que bispos falam nas missas que significa “a paz esteja convosco””. Pode-se considerar até mesmo simbólico que se preocupou em informar o significado do nome da operação, que é relacionado com o sentido de “paz”, mas não em fazer nenhuma elucidação sobre a ação violenta da polícia, totalmente antipacifista. Também se nota uma completa falta de aprofundamento em relação à questão, suas motivações e consequências geradas. 
A segunda notícia analisada é a reportagem exibida na emissora Rede Bandeirantes, ou Band, e disponível no canal do Youtube “Band Jornalismo”. Trata-se de um vídeo de um minuto e três segundos que relata uma operação policial na favela da Maré, no Rio de Janeiro, publicado em maio de 2019: 

Figura 02: Captura de tela de reportagem da Band

Fonte: Canal Band Jornalismo, 2019.

O título da reportagem age da mesma forma que a matéria anterior, associando as mortes à ação policial – porém, não há justificativa explícita em nenhum momento do vídeo sobre porque ocorreu a operação, mesmo que, no imaginário popular, a ação já exista como em função do combate às drogas. A falta de esclarecimento sugere que não é necessário explicitar a motivação dos policiais, ou porque é “óbvio”, considerando o histórico da mídia, ou porque as práticas policiais são tão aceitas que não é preciso serem justificadas. 
A repórter inicia o VT com a frase  “Imagens gravadas por moradores mostram o helicóptero da Coordenadoria de Recursos Especiais, a Tropa de Elite da Polícia Civil, sobrevoando o Complexo da Maré e fazendo disparos do alto”. Não se fala sobre o que levou os profissionais a utilizarem força letal, qual era o objetivo da CORE e qual foi o comportamento dos suspeitos. A reportagem segue sem inserir nenhuma informação acerca dos “inimigos” desse conflito e não questiona as práticas policiais, apenas informa que “os tiros começaram na mesma hora em que alunos saiam das escolas, provocando correria e pânico”. 
Esses questionamentos não são repassados para a população pois a mídia hegemônica faz parte e corrobora para a globalização hegemônica neoliberal conceituada por Boaventura de Souza Santos (2002) como um processo que tem como sua principal característica o fomento à desigualdade social. O Grupo Globo é a principal emissora do país, cujos donos são responsáveis pelas maiores empresas de comunicação brasileiras. Da mesma forma, a Band pertence ao Grupo Bandeirantes e representa a quarta maior rede de televisão do país em audiência e faturamento. Desse modo, reportagens com mais senso crítico e que questionem as ações estatais só serão produzidas quando o assunto não apenas não afetar os donos desses meios de comunicação como também beneficiá-los. Assim, ficam evidentes algumas estratégias que a mídia hegemônica utiliza para fomentar a globalização hegemônica neoliberal e continuar contribuindo para o aumento da desigualdade social em nome do crescimento do mercado. 
Em contrapartida, percebe-se a existência de veículos de mídia alternativa que, por não serem ligados aos grandes detentores da mídia, trazem a problemática com maior acuidade e criticismo. O site Alma Preta é um exemplo disso, como pode-se perceber a seguir:

Figura 03: Captura de tela de matéria do Alma Preta Jornalismo

Fonte: Site Alma Preta, 2017.

De início, a matéria de novembro de 2017 já revela em seu título a verdadeira raiz da “guerra às drogas”: o racismo estrutural brasileiro. O texto começa indicando que estes conflitos urbanos “abastecem com corpos negros o superlotado sistema prisional brasileiro.” A matéria apresenta dados históricos referentes ao sistema penitenciário brasileiro e infere que as tendências deste sistema, nos dias atuais, continuam as mesmas. Quanto aos fatores que acarretam as deficiências no sistema penal brasileiro, é apontado que a legislação atual sobre drogas e o racismo estrutural no Brasil são os principais agentes. O texto traz a visão da ativista Deborah Small, formada em Direito e Políticas Públicas pela Universidade de Harvard, que explica como a questão das drogas no Brasil é uma questão racial, que recai fortemente na polícia como a principal solução. As falhas da legislação também são apontadas, por meio da perspectiva de estudiosos, juízes, advogados, deputados, do uso de dados e de exemplos reais. A matéria indica que o cenário da “guerra às drogas” é seletivo, pois a população negra é a mais atingida pela violência e a maioria do sistema penitenciário.
Outra matéria, publicada em junho de 2023 pelo blog Mídia Ninja, tem direcionamento semelhante:

Figura 04: Captura de tela de matéria do Mídia Ninja

Fonte: Site Mídia Ninja, 2023.

Através do título, podemos deduzir que a instituição policial utiliza a “guerra às drogas” como pretexto para a dizimação em massa de negros e pobres, como já constatado anteriormente. O autor emprega a visão de uma especialista para inferir que a forma como a legislação tem sido implementada é um “verdadeiro genocídio da população negra”. Além deste principal fato, a matéria apresenta dados que não são, de forma alguma, divulgados pela mídia hegemônica: o desperdício de bilhões reais a cada ano em recursos públicos para subsidiar as operações. As informações trazidas pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) são que os gastos anuais, para colocar em prática a lei de drogas, chegam a R$5,2 bilhões apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ademais, a perspectiva de uma socióloga reforça a barbaridade exercida pela polícia ao utilizar o álibi da lei de drogas para provocar mortes e encarcerar a população jovem, negra e periférica no país. E ainda, o emprego de um dado choca – que a polícia mata cinco pessoas negras por dia apenas no Rio de Janeiro. O texto encerra com uma citação da especialista: “Se isso não mobiliza os corações das pessoas, então vamos começar a pensar que isso tem a ver com orçamento público”. 
Deste modo, percebe-se uma discrepância entre discursos vindos da mídia hegemônica e da mídia alternativa. Por esta razão e devido ao impacto social que a questão acarreta na sociedade brasileira, a discussão acerca do tema é indubitavelmente necessária para o campo acadêmico e para a comunidade em geral. Não se pode ignorar os efeitos gerados no país, tampouco os gritos de socorro da população que sofre com esta realidade:
A guerra às drogas afeta diretamente o nosso dia a dia. Para nós, significa escolas fechadas, mudança na rotina, medo de sair de casa, preocupação extrema com o nosso bem-estar e o da nossa família. Em nome dessa guerra, o Estado justifica uma série de violações de direitos contra nós, jovens de favelas e periferias. Mas essa guerra não é nossa. Não fomos nós que declaramos a guerra às drogas. Não fomos nós que decidimos que algumas drogas seriam consideradas legais e outras, ilegais. Mas somos nós que morremos por conta dela (Movimentos, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O percurso histórico da proibição das substâncias psicoativas nos Estados Unidos, cujas ramificações influenciaram não apenas o próprio país, mas se estenderam pela América Latina, evidencia um intrincado quadro de motivações multifacetadas. Alicerçada no conservadorismo moral e nas ansiedades das elites diante das transformações sociais, a "guerra às drogas" assume, no contexto brasileiro, contornos alarmantes, revelando-se como um instrumento de controle social e discriminação racial. O embate protagonizado pelos Estados Unidos, fundamentado em discursos morais, sedimentou-se no Brasil em um momento de transição para o modo de produção capitalista. O combate às drogas, inicialmente justificado como uma resposta à desordem urbana, converteu-se em uma estratégia para conter as insatisfações das classes populares diante das crescentes precarizações do trabalho e da urbanização acelerada.
A expressão "guerra às drogas" revela-se enganadora, pois, na verdade, ela é uma guerra contra pessoas, uma campanha que vitimiza majoritariamente as classes sociais mais vulneráveis. No Brasil, essa guerra opera com violência, estigmatização e exclusão social, resultando em um cenário de extermínio e encarceramento em massa da população jovem, pobre e negra. A perpetuação desse panorama contribui para a violação sistemática dos direitos humanos, com comunidades periféricas enfrentando operações policiais frequentes e a imposição de um estado de sítio cotidiano.
O recorte racial desse conflito é inegável, com a população negra representando a grande maioria dos encarcerados e vítimas da violência policial. Esse cenário é alimentado por um sistema jurídico e policial imbuído de um racismo estrutural, que perpetua práticas discriminatórias e amplifica as desigualdades sociais. A mídia hegemônica, muitas vezes, contribui para a disseminação de discursos que legitimam essas práticas, criando inimigos virtuais e alimentando o ciclo de violência. Este é o caso dos veículos analisados G1 e Rede Bandeirantes, que fazem parte da grande mídia brasileira. 
As vozes da mídia alternativa, como exemplificado por veículos como Alma Preta e Mídia Ninja, emergem como contrapontos cruciais. Ao questionar a narrativa hegemônica e expor as consequências desastrosas da "guerra às drogas", essas fontes oferecem uma perspectiva mais crítica e informada. A denúncia do desperdício de recursos públicos e a exposição das práticas discriminatórias evidenciam a necessidade de uma revisão urgente dessa política.
Em última análise, o enfrentamento da problemática da "guerra às drogas" no Brasil requer uma abordagem integral. Além das reformas nas políticas de drogas, é essencial desmantelar estruturas enraizadas de racismo e promover um diálogo mais amplo sobre as implicações sociais e individuais dessa abordagem. A conscientização, a mobilização social e o engajamento crítico são peças-chave para desafiar esse status quo e buscar soluções mais justas e equitativas para a sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Governo. Índice de vulnerabilidade juvenil à violência 2017: desigualdade racial, municípios com mais de 100 mil habitantes / Secretaria de Governo da Presidência da República, Secretaria Nacional de Juventude e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017. 87p.7

CARNEIRO, Júlia. Brasil Viveu Um Processo de Amnésia Nacional Sobre a Escravidão, Diz Historiadora. BBC News Brasil, 2018. Disponível em:  <www.bbc.com/portuguese/brasil-44034767#:~:text=O%20Brasil%20foi%20o%20ultimo%20pa%C3%ADs%20do%20Ocidente%20a%20abolir%20a%20escravid%C3%A3o>. Acesso em 25 dez. 2023.

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FERNANDES, Vagner Ribeiro; FUZINATTO, Aline Mattos. DROGAS: Proibição, Criminalização da Pobreza e da Mídia. In. 1º Congresso Nacional de Direito e Contemporaneidade, 2012, Santa Maria. ANAIS, Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), p.2-9. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/congressodireito/anais/2012/4.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2023.

FERRUGEM, Daniela. Guerra Às Drogas E a Manutenção Da Hierarquia Racial. Vol. 1, Belo Horizonte, Mg, Letramento, 2019.

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